AgInt no REsp 1843825/RS: estudo sobre a impossibilidade da aplicação de efeitos ex tunc nos casos de união estável formalizada por escritura pública

Por Victória Peixoto

O estudo ora apresentado analisa a impossibilidade da aplicação de efeitos retroativos nos casos de união estável quando formalizada por escritura pública.

A união estável foi reconhecida como entidade familiar pelo §2º do art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, amparada pelos princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade e igualdade. Porém, essa proteção constitucional de nada ou pouco serviu, pois em matérias sucessórias, por exemplo, nada foi alterado [1]. A principal mudança ocorreu com o julgamento da Tese 809, na qual o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que é inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil de 2002, equiparando cônjuges e companheiros. Inclusive, também foi necessário que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 4.277-DF em conjunto com a ADPF 132-RJ, reconhecesse a existência dos mesmos direitos às uniões homoafetivas.

Assim, por conta da equiparação das entidades familiares, dentre tantos outros, foi concedido os efeitos patrimoniais às uniões estáveis. É sabido que no casamento, de acordo com o art. 1.658 a 1.688 do Código Civil de 2002, os noivos podem optar por fazer um pacto antenupcial, escolhendo o seu próprio regime de bens; enquanto na união estável os companheiros têm a faculdade de formalizar a união através do contrato de convivência, conforme art. 1.725 do Código Civil de 2002. Vale ressaltar que a existência do contrato não prejudica o reconhecimento da união estável, pois esta se trata de um ato-fato jurídico.

Aqueles companheiros que optarem pela escritura pública para estipular regras de convivência, deverão observar o exposto no art. 215 do Código Civil de 2002. O contrato será realizado pelo tabelião no ato de elaboração do documento público, bem como as exigências específicas para o contrato particular de convivência. [2]

Ainda, o Código Civil de 2002 determina a aplicação do regime da comunhão parcial de bens para a união estável cujas relações patrimoniais não tiverem sido definidas por contrato.

Quanto a alteração do regime de bens, no casamento, é necessária a propositura de uma ação judicial de ambos cônjuges, devendo estes apresentarem uma motivação comprovada – para verificar se não há lesão a direito de terceiros – para que possam alterar o regime de bens. Na união estável há divergência desta formalidade, pois basta que a alteração do regime de bens seja feita por instrumento público ou particular, não necessitando de motivação ou ação judicial.

Ocorre que ao alterar o regime de bens, muitos se questionam qual será o efeito dessa alteração: ex tunc ou ex nunc? Para facilitar a compreensão, é o caso daqueles companheiros que vivem em união estável há 5 anos, por exemplo, e resolvem nos dias de hoje formalizar a união através de uma escritura pública, será possível que eles possam atribuir efeitos retroativos ao regime de bens escolhido à data de quando constituíram a união estável?

A resposta dessa grande discussão foi dada a partir do Agnt no REsp 1843825/RS – e anteriormente no REsp 1.383.624/MG –, de relatoria do Min. Moura Ribeiro, julgado em 08/03/2021. Veja-se a ementa:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. DISSOLUÇÃO.

ESCRITURA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO DE EFEITOS RETROATIVOS AO REGIME DE BENS. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL DEMONSTRADO SATISFATORIAMENTE. POSSIBILIDADE DE MITIGAÇÃO DO RIGOR FORMAL EM VIRTUDE DO DISSÍDIO NOTÓRIO. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.

  1. Aplica-se o NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.
  2. Na linha da jurisprudência dominante no âmbito das Turmas que compõem a Segunda Seção do STJ, o regime de bens constante de escritura pública de união estável não tem efeitos retroativos.
  3. Dissídio jurisprudencial demonstrado satisfatoriamente.

Possibilidade de mitigação dos requisitos formais de admissibilidade do recurso especial pela alínea c do permissivo constitucional diante da constatação de divergência jurisprudencial notória.

Precedentes.

  1. Não sendo a linha argumentativa apresentada capaz de evidenciar a inadequação dos fundamentos invocados pela decisão agravada, o presente agravo não se revela apto a alterar o conteúdo do julgado impugnado, devendo ele ser integralmente mantido em seus próprios termos.
  1. Agravo interno não provido.

(AgInt no REsp 1843825/RS, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/03/2021, DJe 10/03/2021). [3]

O fundamento do Superior Tribunal de Justiça em entender pela impossibilidade de atribuir efeito ex tunc à alteração de regime de bens constante de escritura pública de união estável, diz respeito à não conferir mais benefício à união estável do que a lei atribui ao casamento [4]. Portanto, o regime de bens entre companheiros começa a vigorar e produzir efeitos a partir da data em que ambos assinam o contrato.

De acordo com o Professor José Fernando Simão:

O contrato de união estável não retroage nem pode retroagir gerando “perda da meação”, pois se trata de direito adquirido e já incorporado ao patrimônio de seu titular. Razão tem o Superior Tribunal de Justiça quando decidiu, segundo o melhor direito, pela irretroatividade da cláusula contratual. [5]

Por essa razão, é de extrema importância que haja um planejamento patrimonial na união estável, pois a situação fática que não tenha um contrato estabelecido pode trazer consequências que não poderão ser modificadas futuramente. [6]

Apesar de haver muitos doutrinadores que defendam a posição contrária ao que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, conclui-se que, utilizando-se do raciocínio jurisprudencial, não é lícito aos conviventes atribuírem efeitos retroativos ao contrato de união estável, a fim de eleger o regime de bens aplicável ao período de convivência anterior à sua assinatura, se tratando, assim, de efeito ex nunc.

[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 254.
[2] MENEGHETTI, Alessandra. Efeitos Retroativos da Escritura Pública de União Estável. Revista ESMESC, v. 22, n. 28, p. 59-78, 2015. Disponível em: https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/121. Acesso em: 28 abr. 2021
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). AgInt no REsp 1843825/RS, Relator: Min. MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, 8 mar. 2021.
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 272.
[5] SIMÃO, José Fernando. Retroagir ou não retroagir: eis a questão! Revista Consultor Jurídico, 27 set. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-27/processo-familiar-retroagir-ou-nao- retroagir-eis-questao. Acesso em: 28 abr. 2021.
[6] DINIZ, Marcelo Gayer. Efeitos do contrato de união estável não retroagem. Jurisite: Advogados em Foco. Disponível em: https://www.jurisite.com.br/advogado_foco/efeitos-do-contrato-de-uniao-estavel-nao-retroagem/. Acesso em: 28 abr. 2021.

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). AgInt no REsp 1843825/RS, Relator: Min. MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, 8 mar. 2021.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

DINIZ, Marcelo Gayer. Efeitos do contrato de união estável não retroagem. Jurisite: Advogados em Foco. Disponível em: https://www.jurisite.com.br/advogado_foco/efeitos-do-contrato-de-uniao-estavel-nao- retroagem/. Acesso em: 28 abr. 2021.

MENEGHETTI, Alessandra. Efeitos Retroativos da Escritura Pública de União Estável. Revista ESMESC, v. 22, n. 28, p. 59-78, 2015. Disponível em:

https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/121. Acesso em: 28 abr. 2021.

SIMÃO, José Fernando. Retroagir ou não retroagir: eis a questão! Revista Consultor Jurídico, 27 set. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set- 27/processo-familiar-retroagir-ou-nao-retroagir-eis-questao. Acesso em: 28 abr. 2021.

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