Entenda as alterações na Lei de Improbidade Administrativa: possibilidade de revisões de condenação

por Éderson Porto, Bruna Mattos e Thiago Fontanive

Em 25 de outubro de 2021, foi sancionada a Lei n° 14.230, que altera dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992). A nova Lei tem como objetivo principal reduzir o arbítrio do Ministério Público, na propositura da ação, e do Poder Judiciário, no julgamento destas, visando, assim, promover maior segurança jurídica em favor do gestor público. Muito embora o combate à corrupção seja um ideal a ser perseguido por todos, muito embora não se desconheça que a tradição brasileira não revelou nos últimos anos o devido cuidado com a coisa pública, não se pode criar um ambiente de terrorismo extremo que impossibilite o gestor público de tomar decisões. Deve-se, portanto, encontrar uma forma de solucionar o paradoxo chamado pelos administrativistas como “apagão das canetas”, quando nenhum administrador tem a coragem de assinar por atos que envolvem um mínimo risco. É preciso portanto distinguir ato ímprobo daquele ato de gestão que possa ser considerado mal sucedido mas não envolve nenhuma intenção maliciosa por parte do agente público.

Essa Lei traz mudanças significativas na tipicidade dos atos de improbidade administrativa, bem como no âmbito do processo judicial que tem a finalidade de apurar a prática de tais atos.

Nesse sentido, com a nova redação, dada pela Lei n° 14.230/2021, para caracterizar ato de improbidade administrativa será necessária a demonstração do dolo específico (art. 1º, § 1º, da Lei 8.429/1992) tanto do agente público (art. 2º da Lei 8.429/1992) como do terceiro (art. 3º da Lei 8.429/1992). Significa dizer que ao órgão acusador competirá o ônus da comprovação de que essas pessoas tinham a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outrem (arts. 1º, § 2º, e 11, § 2º, ambos da Lei 8.429/1992) nas modalidades de enriquecimento ilícito (art. 9º da Lei 8.429/1992), de prejuízo ao erário (art. 10 da Lei 8.429/1992) e/ou de violação dos princípios da Administração Pública (art. 11, caput e § 1º, da Lei 8.429/1992).

Em que pese a inovação legislativa tenha sido recebida como um golpe ao combate à corrupção, é preciso registrar que a medida aprovada no Congresso apenas consagra orientação que havia sido consolidada no Superior Tribunal de Justiça. Vale reproduzir recente julgado:

“(…) 3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é consolidada no sentido de que para configuração do ato de improbidade administrativa é imprescindível a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo, para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. Destaca-se, outrossim, que é pacífico nesta Corte Superior que o ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/1992 exige a demonstração de dolo, o qual, contudo, não precisa ser específico, sendo suficiente o dolo genérico que não exige perquirir acerca de finalidades específicas. No mesmo sentido: AgInt no REsp 1826450/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 17/02/2021; AgInt no REsp 1430325/PE, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 13/03/2018. (…) (AgInt no REsp 1921760/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/09/2021, DJe 23/09/2021).

Impõe-se reconhecer que jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admitia a condenação de agente público por ato de improbidade quando demonstrado o chamado “dolo genérico”, vale citar precedente recente:

XIV – Oportuno salientar que a comprovação da intenção específica de violar princípios administrativos não é exigida para fins de caracterização da atuação em desconformidade com o art. 11 da Lei n. 8.429/1992, bastando a demonstração do dolo genérico. Nesse sentido: REsp n. 1.690.566/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 16/11/2017, DJe 19/12/2017. (…) (AgInt no AREsp 1745179/PE, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/09/2021, DJe 08/10/2021).

No entanto, a alteração legislativa estabelece que a configuração de ato de improbidade administrativa não é suficiente o dolo genérico, afastando assim entendimento do STJ (AgRg no REsp 1.500.812/SE)¹, muito menos a demonstração somente da culpa (arts. 1º, § 3º, e 17-C, § 1º, ambos da Lei 8.429/1992).

Além disso, no caso de imputação de ato de improbidade administrativa à pessoa jurídica de direito privado, os sócios, os cotistas, os diretores e os colaboradores desta apenas serão responsabilizados se ficar demonstrada a participação e o benefício direto deles (art. 3º, § 1º, da Lei 8.429/1992). Ou seja, não há mais que se falar em responsabilidade objetiva do sócio, pela mera ocupação do cargo ou função; mas sim em responsabilidade subjetiva, que decorra da prática de ação ou omissão com a finalidade de obter benefício indevido.

Com a ideia de cumprir o dever constitucional de fundamentação das decisões, a Lei 14.230/2021 incluiu o art. 17-C, que estabelece os elementos essenciais da sentença proferida no âmbito do processo judicial que visa apurar a prática de ato de improbidade administrativa. Em especial, para garantir maior transparência às sanções aplicadas, o inc. IV prevê a dosimetria da pena, arrolando aspectos que o juízo deve considerar na aplicação da sanção. Sendo que a inobservância do art. 17-C certamente violará o devido processo legal pela ausência de fundamentação, o que torna inviável o controle dos critérios judiciais para fixação da pena.

Também violará o devido processo legal, em razão da nulidade da decisão judicial, a sentença condenatória que não respeitar o princípio da congruência, isto é, correspondência entre imputação e condenação, acusação e sentença (art. 17, §§ 10-C e 10-F, inc. I, da Lei 8.429/1992).

Por sua vez, com o objetivo de evitar duas condenações pelo mesmo fato (princípio do no bis in idem), a Lei 14.230/2021 incluiu o § 7º no art. 12, que prevê, expressamente, a impossibilidade de cumulação das sanções da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) com as da Lei Anticorrupção (Lei 12.843/2013). Na verdade, a nova Lei vai além, ela amplia os efeitos da sentença penal absolutória, ainda que seja por ausência de prova, para a esfera civil, acarretando na extinção da ação de improbidade administrativa que apurava a prática dos mesmos fatos (art. 21, § 4º, da Lei 8.429/1992). Isso deve provocar uma revisão nas posições do STJ (REsp 1.323.123/SP) e do STF (ARE 664.930 AgR)².

Ainda, não há mais que se falar em recebimento da ação para a aplicação das sanções da Lei de Improbidade Administrativa com base no princípio do in dubio pro societate. A nova Lei traz requisitos objetivos para o juízo receber a petição inicial do Ministério Público (art. 17, § 6º, da Lei 8.429/1992), o que lhe impõe maior ônus investigativo. Isso também acaba forçando que o STJ revise seu entendimento (REsp 1.192.758/MG)³.

Outrossim, a nova Lei afastou a possibilidade de inclusão do valor de eventual multa civil no montante afetado pela indisponibilidade de bens, afirmando que atingirá exclusivamente o valor do integral ressarcimento do dano ao erário (art. 16, § 10, da Lei 8.429/1992). Novamente, o STJ deverá rever sua posição, que estava, inclusive, firmada em tese (tema 1.055)4. Considerando que a parte processual da lei tem aplicação imediata, isso deve provocar inúmeros pedido de reanálise do bloqueio cautelar de bens por excesso de indisponibilidade.

Ademais, em homenagem ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII, da CF), a nova Lei veda a possibilidade de execução provisória da sanção aplicada (art. 12, § 9º, da Lei 8.429/1992). Isto é, o cumprimento da sentença condenatória apenas ocorrerá após o trânsito em julgado desta, momento em que a decisão se torna definitiva porque não cabem mais recursos.

Por fim, é importante destacar a possibilidade de retroatividade da lei mais benéfica ao réu. Isso porque princípios do direito penal também devem ser aplicados no direito administrativo sancionador (tanto no STF: ARE-RG 1.175.650/PR e Rcl 41.557/SP; como no STJ: AgInt no RMS 65.486/RO, REsp 1.402.893/MG e RMS 37.031/SP). Ora, com a revogação da improbidade administrativa culposa, que passa a ser conduta atípica, toda e qualquer condenação baseada nisso merece ser revisada por meio de ações rescisórias. Bem como, com a revogação do art. 10-A da Lei 8.429/1992, toda sentença condenatória de ato de improbidade administrativa decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário também merecerá ser revista através de ação rescisória. Além disso, considerando que os incs. do art. 11 agora são taxativos (numerus clausus), e não mais exemplificativos (numerus apertus), toda sentença condenatória de ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública, fundamentada em hipótese não prevista na lei, igualmente merecerá ser desconstituído por meio de ação rescisória.

Nesse mesmo sentido, nas ações em curso que buscam a aplicação das sanções pela prática de ato de improbidade administrativa e que tem como base fato culposo ou hipótese de incidência revogados pela nova Lei, estas devem ser julgadas improcedentes de forma antecipada, pela impossibilidade jurídica do pedido – condenação por fato atípico.

Dessa forma, arroladas algumas das principais mudanças na Lei de Improbidade Administrativa esperamos que a lei de fato cumpra com o seu papel, a saber: reduzir a margem de discricionariedade do Ministério Público e do Poder Judiciário. Isso porque a legitimidade democrática desses agentes políticos, já que não foram eleitos, decorre da fundamentação das suas decisões. Assim, esperamos que a nova Lei assegure o importante papel de combate à corrupção e improbidade administrativa, sem perder de vista que o exercício de todo e qualquer ofício envolve uma margem de risco, não sendo admissível sancionar o gestor inábil, equiparando-o ao ímprobo. 

1 Até então, o STJ tinha o entendimento de que, para configurar ato de improbidade administrativa, na espécie violação dos princípios da Administração Pública (art. 11 da Lei 8.429/1992), bastaria o dolo genérico.
2 Em ambos, até o momento, o entendimento era de que as esferas penal e administrativa não estão vinculadas, notadamente, quando a sentença penal absolutória está fundada em ausência de provas.
3 Até então, o STJ tinha o entendimento de que “é suficiente a demonstração de indícios razoáveis de prática de atos de improbidade e autoria, para que se determine o processamento da ação, em obediência ao princípio do in dubio pro societate, a fim de possibilitar o maior resguardo do interesse público”.
4 Tema 1055 do STJ: “É possível a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no art. 11 da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos.”

Referências

GERBER, Daniel; OLIVEIRA, Mariana Costa de. Nova Lei de Improbidade Administrativa tem importantes inovações. In: Conjur, 29 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-29/opiniao-lei-improbidade-importantes-inovacoes. Acesso em: 1 nov. 2021.

OSÓRIO, Fabio Medina. Retroatividade da nova lei de improbidade administrativa. In. Migalhas, 1 nov. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/354112/retroatividade-da-nova-lei-de-improbidade-administrativa. Acesso em 1 nov. 2021.

PEREZ, Stephanie Carolyn; FERREIRA, André. Nova Lei de Improbidade Administrativa: 10 pontos que você precisa conhecer. In: Conjur, 30 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-30/opiniao-lia-dez-pontos-voce-conhecer2. Acesso em: 1 nov. 2021.

RODRIGUEZ, Caio Farah; SÜSSEKIND, Evandro Proença. Nova Lei da Improbidade cria possível cataclismo no controle à corrupção. In: Folha de São Paulo, 31 out. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/nova-lei-da-improbidade-cria-possivel-cataclismo-no-controle-a-corrupcao.shtml. Acesso em: 1 nov. 2021.